Foi em 2009 que Sara Tavares foi diagnosticada com um tumor cerebral benigno. A cura deixou-lhe mazelas e revelaria mais tarde que ficou a padecer de epilepsia. Tudo isso mudou vida e carreira de uma cantora ímpar em Portugal, que esteve muitos anos afastada da música, com todos esses problemas de saúde.
Em 2022, os problemas agudizaram-se e Luís Osório, o conhecido jornalista, dedicou-lhe, em setembro deste ano, o seu ‘Postal do Dia’, para falar sobre a sua admiração por Sara Tavares, mas também sobre as injustiças da vida.
Um texto imperdível, que foi viral nas redes sociais, na altura, e volta agora a estar nas tendências, após este tumor ter levado a melhor sobre esta tão acarinhada cantora, mas que poucos conheciam a sua história.
“Sara Tavares, a quem a vida tudo deu e quase tudo tirou
1.
Portugal é um país pequenino.
Acabamos todos por nos conhecer e até nos convencemos que almoçámos ou falámos com quem jamais se cruzou connosco.
Nunca me cruzei com a mulher de quem te quero falar.
Nunca estive na mesma sala, nunca a vi sem ser num espetáculo no Teatro São Luiz, ao longe.
Mas admiro-a no que dela acredito conhecer.
Aposto que é uma mulher forte e teimosa que gosta de escolher o seu caminho, que prefere errar sendo ela do que acertar sem que o resultado venha de si, das suas urgências, dos seus medos, da sua profunda inquietação, da sua raiva também.
2.
Talvez seja a melhor voz da música portuguesa.
Pelo menos a voz mais inteligente, a que se foi adaptando ao que vida quis que fosse.
Falo-te de Sara Tavares.
A Sara a quem a vida deu e tirou.
A quem a vida desafiou como se tudo isto fosse um jogo, como se o seu destino já estivesse desenhado numa qualquer roleta russa.
Deu-lhe tudo, retirou-lhe tudo.
E que perversa tem sido a vida para a Sara.
Sempre quente e fria.
Sempre a oferecer-lhe sonho, mas a acordá-la com pesadelos.
Sempre a dar-lhe ilusões, mas a carregá-la de medo, de dúvida, de cansaço.
3.
A Sara que apaixonou o país quando cantou no concurso Chuva de Estrelas.
Lembras-te?
Tinha 16 anos quando apanhou o barco de Cacilhas para o Terreiro do Paço e depois o autocarro para os estúdios. Cantou Whitney Houston e tudo lhe pareceu ser possível.
Crescera sem os pais – a Dona Eugénia, branca, foi a avó que a mimou. Uma avó emprestada no Pragal, lugar onde era feliz quando corria ou mergulhava ou ia à pesca com canas feitas de espigas.
Feliz enquanto jogava à bola como os rapazes.
Mas havia qualquer coisa. Um ruído interior, uma tristeza que se tornou matéria viva. A ausência dos pais, a ausência de carinho, de colo, uma espécie de solidão que não dependia da quantidade de amigos e da rede de amor de Dona Eugénia.
4.
A Sara transformou-se numa estrela.
Ganhou o Festival da Canção, mas não queria ser uma estrela a cantar o que não lhe dizia nada. Por isso, foi à procura. Compôs, convidou produtores e músicos de que gostava, fez álbuns marcantes e amados pela crítica.
E teve de parar por causa de um tumor no cérebro.
Um tumor benigno que resolveu com uma operação.
Retomou e parou.
Voltou a retomar e voltou a parar.
E agora, em 2022, uma recidiva.
Problemas na voz, impossibilidade de tocar guitarra, problemas e mais problemas, adaptações mais adaptações.
Mas continua.
Deixou a sua equipa, quis ficar sozinha.
Mas continua viva.
Desperta para as injustiças, para o racismo, para a hipocrisia mascarada de oportunidade.
Continua a viver no Pragal, o lugar com vista para Cacilhas e o Cristo-Rei.
É uma mulher do caraças.
Uma mulher poderosa.
Com um talento extraordinário e uma relação com a vida que talvez Deus ou um querubim um dia lhe possa explicar.
Porquê sempre isto?
Este dá e tira, este carrossel que é comboio fantasma, esta luz que se torna sombra?
A Sara Tavares é bem capaz de fazer estas perguntas, mas por favor não tenhas pena dela.
Porque ela é grande e precisa de tudo menos disso, precisa de ser ouvida, que a oiçamos sem mais nada.
Ouve Mana Fé e não tenhas pena.
Só reconhecimento de que a vida é uma carta fechada para todos, incompreensível bastas vezes, absoluta”.
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