Luís Osório tem este dom de emocionar a todos com as suas palavras. Por isso, as suas crónicas diárias fazem tanto sucesso, tanto no seu Facebook, como no seu podcast, na rádio TSF. É um dos nomes maiores do jornalismo português, que desta vez, dedicou o seu tempo para escrever uma carta que ele gostava que José Saramago pudesse ler.
No dia em que o país celebrou os 100 anos sobre o nascimento do Nobel da Literatura, o Postal do Dia de Luís Osório é para José Saramago. Num exercício de imaginação, o jornalista acredita que estas palavras possam chegar ao mais memorável dos escritores portugueses e é por isso que a ele se dirige, a contar-lhe como estão as coisas por cá, sem ele. Mas sempre com ele.
“Que o carteiro leve este postal a Saramago
1.
Caro José Saramago
Se souberes deste postal, se alguém dele te falar, é sinal de que não tinhas razão.
Seria uma notícia excelente a existência de Deus e de uma outra vida fora desta que tão bem conheceste e nos ajudaste a compreender.
Vou partir dessa possibilidade que é em mim uma convicção profunda.
Deixa-me então dar-te um abraço e os parabéns pelos teus 100 anos.
As comemorações deste teu centenário prolongaram-se por países, cidades, aldeias e até casas particulares.
Há debates, lançamento de livros, plantação de oliveiras, polémicas, releituras, prémios, tudo e mais um par de botas.
2.
Mas deixa-me dizer-te que hoje, dia em que fazes 100 anos, podes estar tranquilo em relação ao futuro.
Tens a tua obra, isso não se discute.
É imortal como imortais são alguns dos teus personagens – a Blimunda e o Baltazar de “Memorial do Convento”, os homens e as mulheres sem nome de “Ensaio sobre a Cegueira”, o revisor da “História do Cerco de Lisboa” e tantos e tantas que nos continuam a oferecer um sentido possível.
Mas não tens apenas a tua obra.
Tens a tua única filha e os teus dois netos.
Estas comemorações provaram que não são apenas teus netos e que não é apenas a tua filha.
Eles são mesmo um prolongamento do teu olhar, do teu silêncio que é o contrário de desistência, da obstinação que chateia os que preferiam que tudo estivesse adquirido à partida, da vontade de se fazerem ouvir, da vontade de não te defraudar, de não te desiludir, de proclamar que aconteça o que acontecer o teu nome continuará a existir na próxima geração, e na outra, e na outra a seguir.
3.
Podes ficar contente com a Violante Saramago.
Tua filha.
Escreveu um livro dedicado ao pai que foste.
Li em “De Memórias nos Fazemos” dos conselhos de infância, das palavras que lhe ficaram, da visita que lhe fizeste quando esteve presa na António Maria Cardoso, nas vossas cumplicidades.
A tua filha escreveu um livro e fez apresentações em todo o lado. No país e no estrangeiro.
Saiu do Funchal onde vive há tantos anos com o Danilo por não lhe ser possível apagar-se, por lhe ser insuportável essa ideia.
Inesquecível a sua conversa pública com o teu amigo e único editor, Zeferino Coelho.
Inesquecíveís as suas palavras em tantos lugares que esgotaram para ouvir a sua voz e pela assombração que nos atinge quando a vemos – ela é fisicamente muito parecida contigo, são iguais diria o funcionário do arquivo de “Todos os Nomes”.
4.
Ah, e podes ficar orgulhoso da tua neta Ana.
Tens seguido o seu percurso.
As notícias da sua galeria de artes plásticas.
A sua imperturbável serenidade e firmeza.
Ana Saramago Matos, tua neta a quem o Presidente da República abraçou fortemente pela exposição tão bem montada no Museu de Arte Contemporânea.
Passaste por lá?
A neta que plantou 100 oliveiras na tua Azinhaga, naquela ruazinha à entrada, uma rua perfeita onde cada uma das árvores tem o nome de um personagem. A Ana que abriu apenas duas exceções, a primeira oliveira chama-se Jerónimo e a última, plantada hoje, é a Josefa.
Não podes não te ter comovido.
E ainda falta o teu outro neto, o Tiago.
Discreto, silencioso, mas tão orgulhoso do avô como a irmã ou a mãe.
E já tem um filho, até agora o teu único bisneto, o Ari.
5.
O orgulho que sentem não é apenas pelo José Saramago.
Pelo escritor, pelo Nobel, pelo imortal.
Mas do José, de ti, de tudo o que eles carregam de ti.
Do que herdaram no modo de falar, de se sentarem, de comerem à mesa, na forma de se deitarem, nos pequenos gestos e tiques.
Do que neles ficou, do silêncio do vento nas oliveiras da Azinheira onde hoje está tanto frio e tanta chuva.
Estás aí, José?
Consegues ler-me ou ouvir-me?
Fica bem, por cá o teu nome persistirá.
Encontramo-nos um dia, com menos chuva do que hoje, assim o espero”.